Foto: René Cabrales |
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PORTO ALEGRE, RS – Ivone Pacheco nasceu em Porto Alegre (RS). Após a infância e
a adolescência vividas ao redor do Hotel Metrópole, de propriedade do pai, no
Centro da capital gaúcha, dedicou a vida adulta ao casamento, aos filhos e à
carreira como professora na rede estadual do Rio Grande do Sul.
Ou quase isso.
Ou quase isso.
No começo dos anos 80, Ivone decidiu, como em uma canção de
Charles Mingus, fazer uma parada brusca, para voltar com tudo logo a seguir. Em
1982, iniciou um lendário clube de jazz
no porão de sua casa, no bairro Petrópolis – o Take Five –, que mudou para
sempre sua trajetória.
Nesta entrevista, concedida há 10 anos para a revista Panvel
Sempre Bem, em uma pauta que deveria focar em saúde e bem-estar para pessoas
acima de 60 anos, Ivone abriu seu porão e revelou histórias e impressões sobre
o mundo que foram pouco aproveitadas na matéria original, mas que não poderiam
ficar restritas ao arquivo pessoal de um jornalista.
Pela primeira vez, a versão completa desta conversa é publicada,
extraída do arquivo de áudio original em que foi gravada, em uma manhã de
dezembro de 2008, no famoso porão onde ocorrem, até hoje, as sessões de jazz do Take Five.
No bate-papo, Ivone revelou as ideias de uma mulher que vive
à frente do seu tempo, mas que também acredita em instituições tradicionais. “Para mim, um homem e uma mulher morarem
juntos, é casamento. E casamento tem que ser na igreja e no cartório. Quer
dizer, eu sou careta, mas pra música eu sou louca. É só ali que eu me liberto.
Eu continuo sendo aquela menina educada em colégio de freira”,
confidenciou.
Mais do que uma mãe, uma esposa ou uma professora, no
entanto, Ivone sempre se viu como artista. “O artista, por ser muito
sentimental, ele sofre mais. Eu vejo a vida por outro prisma. Eu vejo pelo lado
espiritual”.
Boa leitura.
Boa leitura.
***
LT - A senhora desde
criança teve contato com a música. Conte um pouco sobre como foi esse começo.
Ivone Pacheco – Com
quatro anos, eu tocava piano sozinha. Eu me criei em um hotel, do qual meu pai
era dono. E, com oito anos, eu comecei a ter aula particular. Naquele tempo, a
professora ia em casa. No começo, eu brincava, tentava tirar músicas sozinha. E
aí, com oito anos, a professora veio me dar aulas. Uma senhora um dia me ouviu
tocando e falou para minha mãe, “olha, essa menina tem que aprender música, ela
tem ouvido”. E aí eu comecei com aulas particulares.
Isso foi, foi, foi... Eu cheguei até o oitavo ano. Estudei
música clássica, erudita. Mas eu não gostava daquilo. Eu assistia filmes
americanos e me entusiasmei pelo jazz
desde criança. Com 12 anos, eu já queria fazer harmonia jazzística, e a
professora me batia nas mãos, porque ela não admitia aquilo. Eu tinha que tocar
Chopin, Beethoven, Mozart, Bach. Estudei até o oitavo ano. Com a morte da minha
mãe, eu interrompi os estudos.
Depois, retomei um pouco, [nota do editor: nos anos 70, já
casada e com filhos, Ivone estudou no Liceu Musical Palestrina, antiga escola
de música de Porto Alegre, que encerrou as atividades no ano 2000] mas toda moça tinha que casar. O homem
tinha que fazer o serviço militar e a mulher tinha que casar e ter filhos. E o
meu pai, de origem italiana, começou a perguntar... Ele queria se livrar das
filhas, eu acho, né? Para poder se casar também. Só que ele não casou.
A minha irmã também tocava violino e cantava. Isso estava na
raiz da família – na Itália já tínhamos uma cantora na família. E a minha mãe
também cantava em casa. Trechos de óperas, cançonetas italianas. Mas aí, eu
interrompi e começou aquela ideia, “tem que casar, tem que casar, não adianta
tocar piano”. O meu pai não queria que a gente fosse artista. Então, eu casei,
já com 27 anos. Naquele tempo se costumava casar virgem, né? Então, tu vês o
tempo que a mulher perdia com namoro, noivado e casamento. Bom, aí, em seguida
vieram os filhos. Eu tenho três filhos, duas moças e um rapaz.
LT - O clube de jazz já tem 26 anos [nota do editor: atualmente o clube já tem 36 anos]. Como ele
surgiu na sua vida?
Ivone Pacheco – É,
o clube já vai fazer 27 anos. Eu fui descoberta por um jovem chamado Marcos
Ungaretti. Ele é compositor e, na época, estava na colônia de férias da UFRGS,
tocando num piano velho. Eu sentei depois e fui tocar um pouco. Aí ele disse
assim: “a senhora toca jazz”. Eu nem
sabia que eu tocava jazz.
Ele achou meu estilo interessante, fez amizade comigo, me
levou para conhecer o estúdio da banda dele, o Grupo Raiar. Me levou para
conhecer a família dele. E me convidou para ir pro Teatro Renascença, onde ele
deu um show com a banda dele. Aí, ele vinha aqui tocar comigo, mas o piano tava
na sala tradicional, lá de cima. Aí deu uma “descambada” na família quando a
coroa inventou de baixar o piano e fazer o clube de jazz aqui embaixo.
Eu tinha uns quarenta e poucos anos, quase 50 – é a hora em que
a mulher dá uma virada, sabe? Eu já tava cheia daquilo de marido, filhos,
prisão. O casamento pra mim foi uma prisão. E eu era professora no Estado
também.
A minha irmã falou pra mim, “tu vais sair de casa”. Como
assim, sair de casa? “Tu vais trabalhar fora e estudar fora, já que tens o
piano tu vais tirar Educação Musical, eu pago a faculdade pra ti, e tu cai fora
de casa, porque tu tá desatualizada, só envolvida com comida, casa e criança”.
Aprendi a tocar acordeão, que o gaúcho chama de gaita. No
nosso sangue italiano tem música. A minha irmã estudou violino, cantava sem ter
aula com professora particular. Eu, com o tempo, comecei a cantar música
francesa. O pessoal gostou muito. Eu faço música francesa e canto, é um outro
trabalho. Mas tem um carro-chefe que é o piano, e é o jazz.
Afinal, eu disse, vou abrir um clube de jazz. “Onde?”, perguntou o Marcos. “No meu porão”, eu respondi. Aí
veio ele e outro rapaz, o Sérgio Jaeger, que também me deu muita força. Aí
começaram a me levar pra noite, pra conhecer bares onde tocavam. Se tinha
piano, eu dava canja. Aí eu comecei a ir pra noite. E os filhos, naquela fase
da adolescência, apavorados. “A mãe enlouqueceu, os magros do Bom Fim tomaram
conta da nossa casa!”. Começou assim. Isso foi em mil novecentos e oitenta e
poucos [nota do editor: o Take Five começou em 1982].
Uma vez tinha 300 pessoas aqui. Toda a juventude. Aí os
coroas tomaram conta, porque os jovens chamavam os pais e os tios que tinham
abandonado a música, e eles voltaram a tocar.
LT – E a senhora
ganhava algum dinheiro com isso?
Ivone Pacheco – O
clube sempre teve entrada franca. Nunca cobrei nada de ninguém. Mas ele também
sempre foi meio secreto, porque senão vem muita gente. Uma vez nós fechamos por
três meses, porque tinha 200 pessoas, tinha moto, tinha carro, gente que vinha
a pé... As pessoas começavam a chamar as outras. Os coroas foram tomando conta.
“A tia Ivone, ela mora num porão”, a gurizada dizia. Eles achavam que eu morava
no porão, que eu era uma velha meio louca que vivia num porão. Aí, depois,
queriam que eu fumasse maconha, e eu respondia, “não, não quero saber dessa
coisa.”
LT – Como era essa
turma na época que começou o clube de jazz?
Ivone Pacheco – Eles
usavam aquelas calças jeans
boca-de-sino, largas. E as gurias com aquelas batas indianas. Aí eu passei a me
vestir como hippie. Eu não entrei na
maconha, mas eu adorei aquela vestimenta hippie,
aquela coisa liberta. Uma coisa estranha, bem indiana. Porto Alegre estava
forrado disso. O movimento era no Bom Fim, mas eles subiram para cá e vinham
tocar. Tocavam bateria.
Na primeira sessão tinham 25, depois já aumentou. Foi
aumentando. E eu fazia toda semana. Aí eu comecei a cansar, e a vizinhança
começou a reclamar, né? Porque era três, quatro da manhã, e eles queriam
continuar tocando. Era sempre aos sábados. Agora eu faço três sessões do clube só
por ano, porque eu cansei.
LT – A senhora também
tocou muito fora do Brasil. Como foram essas experiências?
Ivone Pacheco – Mais
para o fim dos anos 80, eu toquei nas ruas em Nova Orleans, em Nova York e em
Paris. Fui fazer pesquisa de jazz.
Fui primeiro com a minha irmã, depois com a minha filha. E em Paris eu ganhava
moedas do mundo inteiro.
Toquei muito em Brasília, no interior do Rio Grande do Sul, em
São Paulo, no Rio. Toquei em Porto Seguro. Lancei um CD só, até tenho que fazer
mais. Eu vendi muito CD. A experiência de Nova Orleans foi muito boa, porque eu
conversava em espanhol com os músicos de lá. Eu não falo inglês. Falo italiano,
francês, espanhol. Eu não gosto muito da língua inglesa.
Lembro também que toquei numa travessia de Nápoles a Capri
(Itália) num naviozinho. E comemorei meu aniversário de 76 anos em Atenas
(Grécia), então toquei num navio grande em que velejamos na Grécia, agora há
pouco.
Mas eu nunca tive um promoter,
alguém que pudesse me ajudar a conseguir shows. Eu tinha a secretária
eletrônica, que era a minha “empresária”. As pessoas deixavam os recados. Mas
agora ela estragou.
Toquei muito em Pelotas, também.
LT – É mesmo? Eu sou
de Pelotas.
Ivone Pacheco – Ah,
tu és de Pelotas? Eu toquei no Sete de Abril – três vezes por ano me chamavam.
E eu ficava no Hotel Manta. E tocava num bar, um bar que estava estourando na
cidade, eu acho que tu era muito pequeno, não deve saber...
Também toquei na Argentina, no Chile. Cada viagem que eu
fazia, eu dava uma canja e já me contratavam. Só que eu não ficava muito tempo.
Toquei muito em happy hours em
Brasília, em hotéis e restaurantes, no Feitiço Mineiro. A Cida Moreira que me
indicou para o restaurante. Então, eu não posso me queixar.
LT – Conte um pouco
mais sobre essa experiência que, como a senhora mesmo fala, foi de
“libertação”: de que forma a relação com a música se consolidou na sua vida?
Ivone Pacheco – Toco
piano, acordeão, escaleta, teclado e castanhola. A gente, quando é solteira,
aprende muita coisa. Depois, a vida se vira para o marido e os filhos. Então,
eu abracei a música depois que eles estavam crescidos, e pelo clube de jazz, por causa do Marcos. Aí, eu
abracei direto, até hoje, e não renuncio.
Eu precisava abraçar outra coisa na minha vida. E eu acho
que a coisa certa é a música. É uma coisa espiritual, é uma arte. Eu acho que a
gente sobrevive com a arte, a pintura, a dança, o canto. Tem muita coisa na
arte que tu abraça e tu esquece do resto. E eu esqueci de tudo.
Eu vivo pra música, meus amigos são todos músicos. E esse
clube aqui foi visitado por muita gente. Agora vou ganhar um teclado Roland de
presente. Vão levar para mim para eu tocar nos lugares.
LT - Em termos de
qualidade de vida, quais os benefícios que a música trouxe para a senhora?
Ivone Pacheco – Pra
mim, a música foi meu orgasmo. O orgasmo espiritual é o melhor de todos. A
música é tudo para mim, porque foi interrompida. Ela é o meu amor antigo. E eu
busquei. Sem querer, ela chegou na minha mão. Sem querer não, foi por
intermédio do Marcos. Ele colocou a música na minha vida novamente. Porque eu
casei e abandonei tudo. Eu me dediquei só ao marido e aos filhos. E a minha
irmã veio de Brasília e me sacudiu e disse, “olha, vai pra rua, vai pro mundo.
Tu tá só entocada dentro dessa casa. Isso não é vida”.
LT - A senhora
acredita que uma pessoa acima de 60 anos tem condições de começar a tocar um
instrumento, mesmo que nunca tenha tocado?
Ivone Pacheco – Depende
da vontade, do talento. Tem que ter ouvido, mas também boa vontade. Acho que
não tem idade para a pessoa recomeçar. Mas precisa de tempo. Eu praticava três
horas por dia, mas alguém de idade mais avançada que vá começar agora, precisa
se dedicar mais. O que não pode é, com 60 anos, cruzar os braços e dizer que
está muito velho. Porque ele pode chegar a 90 anos. E vai ficar 30 anos fazendo
o quê? É isso que eu digo. Eu achava que ia viver até 50 ou 60, e eu já estou
com 76. E eu quero chegar aos 90, no mínimo. E a música vai me levar até lá.
Pode ser sem uma perna, deitada, sentada. Tocando, eu vou viver.
A música evita o Alzheimer, tu sabia? Dizem que crochê,
palavra-cruzada, computador, dizem que todo velho tem que lidar com isso. Eu
estou sempre atualizada, vejo televisão, vejo DVD. Mas eu gosto é de filme
antigo. Aí tem que procurar, então não estou vendo muito. Mas estar a par
do que está acontecendo no mundo, eu acho que tem tempo. Não existe isso de
“estou velho”, o que vale é o espírito. É a cabeça estar funcionando e atual.
Eu lido com gente jovem, não com velhos. Eu não posso ir para uma geriatria,
porque eu quero viver. Eu quero ser útil. E quem tá me ouvindo, diz que o meu
estilo está evoluindo ainda.
LT – Muitas pessoas
de mais idade reclamam da solidão. A senhora se sente sozinha?
Ivone Pacheco – Eu
adoro a “solitude”. É tu ficar contigo mesmo e gostar de estar só. Tu já sentiu
isso?
LT – Já. Eu moro
sozinho.
Ivone Pacheco – Tu
mora sozinho? E tu gosta de ficar sozinho?
LT - Gosto, mas não o
tempo todo.
Ivone Pacheco – Eu
acho que eu sempre fui assim, mas não podia, né? Existe o momento para tudo
acontecer. E a pessoa tem que estar na busca, pois se ela fica parada, ela não
encontra nada. Tem um trecho de um livro que eu li, do Jorge Luis Borges. “Caminante, no hay camino / se hace camino
al andar” [nota: na verdade, a poesia é
de autoria do espanhol Antonio Machado]. Tu tem que sair da tua ostra, para
ver o que está acontecendo lá fora. Sem caminhar, eu não seria o que eu sou
hoje. Eu toquei em bares, aí começaram a me chamar. Eu dei canjas. Fui
caminhando sempre. Eu dei aula no Estado, aquilo era uma prisão, era uma jaula.
LT - A senhora deu
aula até se aposentar?
Ivone Pacheco – Sim,
com 60 anos. Eu demorei um pouco mais, pois eu tirava licenças para poder me
dedicar à música. E eu ganhava mais com a música do que como professora. Mas a
gente já está saindo do assunto da entrevista, né? O que interessa é o clube de
jazz, as minhas viagens, onde eu
toquei. Tu vai selecionar aí pra colocar lá no jornal, né?
***
É neste ponto que a gravação se encerra. Já havia conseguido
o que precisava para a minha pauta, mas por mim, passaria o resto da tarde
ouvindo as histórias de Ivone, tentando buscar mais detalhes, conectando os
pontos e as informações na linha do tempo que ela trazia, de memória, no
improviso, como um bom jazz. Ela,
naturalmente, já estava cansada, e terminamos por aí.
Fui convidado para a sessão seguinte do clube, que ocorreu
em abril de 2009, e pude ver e sentir um pouquinho do clima vivido por aqueles
jovens – se não de corpo, definitivamente de alma – desde os anos 80. Hoje, com
86 anos, Ivone ainda participa de sessões do Take Five eventualmente (hoje organizado por sua filha, Rosa Maria Marin Pacheco), apesar dos
problemas de saúde. Como ela mesma diz, segue firme rumo aos 90 anos. “A música vai me levar até lá. Tocando, eu
vou viver”.
Entrevista original publicada na Revista Panvel Sempre Bem, em janeiro de 2009. A íntegra está sendo publicada pela primeira vez neste site.